Decisão do Conselho de Patrimônio de Piracicaba sobre duplicação de via na Rua do Porto é “falaciosa” e “revela uma profunda ignorância”, analisa especialista

A decisão recente do Codepac (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural) de liberar a gestão Luciano Almeida (PP) para a duplicação da avenida Alidor Pecorari é “falaciosa” e “revela uma profunda ignorância” do colegiado. A avaliação é de Fabio Guimarães Rolim, arquiteto e urbanista pela Escola de Engenharia de São Carlos-Universidade de São Paulo/EESC-USP (2001), servidor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan desde 2006 e especialista em Gestão Pública pela Escola Nacional de Administração Pública/Enap (2015). Com base tanto nas práticas atuais de gestão do Patrimônio Cultural como nos decretos municipais de tombamento do trecho entre as pontes do Morato e do Mirante, em ambas as margens do Rio Piracicaba, Rolim pontuou quatro equívocos da alegação do presidente do conselho, Álvaro Saviani, dada em entrevista à imprensa, segundo o qual o tombamento municipal recairia exclusivamente sobre as edificações, e que, por isso, o Codepac não teria competência para tratar de outros aspectos envolvidos naquele projeto, como os ambientais.

Primeiro, o especialista destaca que não existe uma separação entre edificações e espaço urbano, como se fossem coisas autônomas e independentes. Na prática, segundo o Rolim, não há como separar essas dimensões, pois tanto as edificações conformam o espaço urbano como são condicionadas por ele, numa relação de mútua influência, indissociável. "O Patrimônio Cultural nas cidades não se reduz a edificações em si, mas é o resultado de complexas e diversas interações ente os mais variados elementos que constituem o espaço na cidade (construções, logradouros, vegetação, estrutura viária, rio, formas de uso e ocupação etc). Uma argumentação desse tipo é falaciosa e ignora completamente os consensos atuais sobre Patrimônio Cultural em sua dimensão urbana".

No tópico sobre o aspecto legal, Rolim lembra que o encadeamento dos sucessivos decretos municipais de tombamento da região da avenida Beira Rio e Rua do Porto evidencia um foco no espaço urbano, tomado como um todo. O Decreto Municipal nº 8.649, de 8 de outubro de 1999, define como objeto do tombamento a avenida Beira Rio, o Largo dos Pescadores e a Rua do Porto, ou seja, o espaço urbano configurado nessas e por essas vias. O Decreto seguinte, nº 9.294, de 27 de dezembro de 2000, complementou o anterior, especificando as mesmas vias e logradouros já citados e trazendo um detalhamento fundamental ao usar o termo ‘conjunto ribeirinho', além das edificações. “Conjunto ribeirinho, como o nome indica, é todo o conjunto urbano (composto não só de edificações, mas de todos os elementos nele existentes) situado marginalmente ao rio.” O terceiro decreto, 10.643/2004, complementa os dois anteriores ao descrever a delimitação da poligonal de tombamento. “Como resultado desses decretos, está oficialmente protegido todo o espaço urbano compreendido no interior daquela delimitação entre as pontes do Mirante e do Morato em ambas as margens do rio Piracicaba, o que não se restringe a edificações.”

Codepac tem entendimento errado sobre área de intervenção na Rua do Porto
(foto/crédito: Movimento Salve a Boyes)

Em seguida, Rolim ressalva que há diferenças entre tombamentos individuais, de uma única edificação ou logradouro, de tombamentos de áreas urbanas inteiras, como é o caso da proteção dada pelos três decreto citados. “Em Piracicaba existem diversos tombamentos de edificações individuais, com decretos próprios, e muitas delas, inclusive, localizadas dentro da área estabelecida pela delimitação de tombamento do Decreto nº 10.643/2009. Isso evidencia que, se fosse intenção da prefeitura, quando editou aqueles três atos, individualizar edificações especificamente, ela teria feito, como já vinha fazendo e continuou fazendo. Mas não foi isso que aconteceu com a edição do Decreto definitivo, o de nº 10.643/2004 - ao contrário, ele define o tombamento de um setor da cidade nas duas margens do Rio Piracicaba, o que mostra um propósito claro de diferenciação em relação a tombamentos de edificações individuais.”

Por último, o especialista fecha sua análise sobre a obra auto-licenciada pela administração municipal, debruçando-se sobre o aspecto ambiental. “Juridicamente, o Patrimônio Cultural está dentro da noção de Meio Ambiente, conforme o decisivo avanço trazido pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998, Seção IV, artigos 62 a 65). Isso faz com que aspectos ambientais envolvido no projeto na Alidor Pecorari – por exemplo, a supressão de árvores – tenha relação com o Patrimônio Cultural, não apenas com o Meio Ambiente num sentido estrito. Em contexto urbano, como é o caso, o que acontece a um acontece a outro, Meio Ambiente e Patrimônio Cultural, já que são manifestações distintas de um mesmo bem de interesse público: o ambiente urbano, propiciador que deve ser de qualidade de vida urbana.”

Ele continua. “Na qualidade ambiental urbana, elementos naturais, como água e vegetação, entram como fatores determinantes, assim como a relação existente entre eles e as diversas intervenções humanas, edificadas ou não, tomadas em conjunto e de forma indissociável. É dessa relação de conjunto que fala a proteção municipal estabelecida pelo Decreto nº 10.643/2004. A poligonal do decreto, ao incorporar grandes porções de área verde, como o Parque da Rua do Porto, a Área de Lazer do Trabalhador, as matas do Engenho Central e do Parque do Mirante e a encosta do Castelinho, trouxe ao seu objeto de proteção, e de modo evidente, fatores ambientais e ligados à qualidade ambiental urbana.”

Por fim, Rolim assevera que as análises de intervenções na poligonal tombada pelo Decreto nº 10.643/2004 devem considerar esses aspectos citados para a garantia da preservação do patrimônio e da prevalência do interesse público em relação ao privado. “Dizer que o tombamento da área definida no Decreto nº 10.643/2004 limita-se a edificações revela uma profunda ignorância sobre os aspectos acima levantados e consiste em um subterfúgio simplório numa busca por não confrontar interesses de outra ordem. O Codepac está simplesmente deixando de cumprir com sua atribuição”.

A redação consultou o Codepac e a prefeitura sobre a decisão contraditória e quanto à irregularidade de não ouvir Comdema, mas nenhuma informação ou esclarecimento foram prestados à reportagem.

AÇÕES DO MOVIMENTO

O Movimento Salve a Boyes se originou na proteção do antigo conjunto fabril, Centro, e por conexão histórica, cultural e ambiental, acabou abraçando um objetivo maior, o de dar atenção a todo Complexo Beira Rio. Diante da situação de duplicação da avenida Alidor Pecorari e a decisão na sexta-feira, dia 9 de agosto, de autorizar a prefeitura a reduzir a área verde e derrubar árvores em APP (Área de Preservação Permanente), o Movimento ingressará na Justiça com Ação Civil Pública. Vale destacar também a inexistência da consulta da prefeitura ao Comdema (Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente), fase obrigatória para liberação deste tipo de alterações no meio natural. O Salve Boyes se manifesta sobre o assunto em nota à imprensa que segue.

“O Movimento Salve a Boyes apresenta enorme preocupação quanto à aprovação pelo Codepac (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural) do projeto de duplicação da avenida Alidor Pecorari. O Movimento registra que é um ato equivocado, inconsequente e irresponsável a noção a partir da qual o Codepac se baseou, onde se tem afirmado que cabe ao órgão se limitar apenas a edificações do conjunto ribeirinho. É obrigação de um órgão de defesa do patrimônio analisar os aspectos mais amplos que fundamentam a noção de patrimônio natural, cultural, ambiental e social, nas noções amplamente consolidadas tanto nas legislações como nas práticas adotadas na área do patrimônio no Brasil e no mundo. Registra ainda, neste sentido, um absurdo e uma ilegalidade o mesmo Codepac não ter considerado o parecer emitido pelo Comdema (Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente), que coloca-se frontalmente contrário ao projeto da duplicação por afrontar tanto questões legais como um enorme prejuízo para os aspectos ambientais e do patrimônio natural e paisagístico do Parque da Rua do Porto João Herrmann Neto.”


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